Mãos sujas
Muitos pontos da história da humanidade são uma sucessão de motivos para se arrepender, cujas consequências até eram previsíveis antes de “dar ruim”, mas acabaram ignoradas para dar lugar ao inconcebível.
A julgar pelas pesquisas de intenção de voto, os brasileiros estão prestes a cometer uma das maiores sandices da história recente, cujas consequências são solenemente ignoradas. Afinal, como ensinou Marco Maciel, "as consequências vêm depois".
Em um daqueles paradoxos improváveis - mas possíveis -, democraticamente o eleitorado parece disposto a ir às urnas chancelar o autoritarismo como forma de governo. E é sempre prudente termos cuidado com aquilo que desejamos. Para nós e para os outros.
Desconsiderando-se as fraudes perpetradas pelo caminho, o candidato favorito é uma fraude ambulante, um fraco favorito. A campanha de desinformação via WhatsApp é quase uma nota de rodapé. O programa de governo é vago, não diz a que veio. Fosse um business plan, nenhum investidor sensato arriscaria seu dinheiro ali.
Os players do mercado financeiro engajam-se em um previsível casamento por interesse na expectativa que quem venha a dar as cartas seja Paulo Guedes, ex-Beato Salu, atual Posto Ipiranga. Essa lua de mel, no entanto, mal vai passar da noite de núpcias. Talvez não tenham percebido - ou prefiram não ver - a aversão do próprio candidato à democracia liberal.
As únicas propostas claras vão no sentido de institucionalizar o ódio entre as pessoas, a violência como método e a perseguição àqueles que se imagina como inimigos ou opositores. Tudo isso, claro, em declarações públicas, todas elas gravadas.
Nem os mais sanguinários ditadores foram flagrados na defesa escancarada e sistemática da tortura. As barbaridades aconteciam entre quatro paredes. Não à toa, o mais relevante apoio internacional declarado a ele até o momento - e com ressalvas, diga-se - veio da Ku Klux Klan.
A falta de apreço pela democracia também fica clara na fuga dos debates, mas vai além. Está presente nas falas sobre autogolpe, fim do ativismo, banir da “nossa pátria os bandidos vermelhos”, além da rejeição a qualquer resultado que não seja a vitória e na famigerada disseminação deliberada e sistemática de mentiras sobre os adversários. A condenação à democracia é tão veemente, travestida de discurso contra a corrupção, que desautoriza dúvidas a respeito de sua sinceridade.
Há apenas alguns dias, o jornalista Juremir Silva pediu demissão ao vivo na Rádio Guaíba depois de ter sua presença numa entrevista vetada a pedido do candidato. Parece que ele não se sentiria confortável com perguntas de verdade.
E enquanto o filho deputado fala que basta um cabo e um soldado para fechar o STF e ameaça a jornalista Patrícia Campos Mello sem nenhum pudor, comportando-se já como alguém acima das leis, o pai candidato fala claramente em expurgo. “Ou vai pra fora ou vai pra cadeia”, foram as alternativas por ele apresentadas àqueles que não compactuam com sua agenda fascista.
Você aí, prestes a chancelar essa tragédia anunciada, pode pensar até que isso não vai respingar em você, nos seus familiares, nos seus amigos ou conhecidos. Ainda que você digite outro par de números na questionada urna eletrônica, lamento dizer: vai, sim, respingar em você e nos seus.
E quando gente querida começar a morrer ou a matar, usando a violência como solução para a violência, vai ser tarde demais.
Dentro da democracia é possível rever alguns erros. Sair dela por opção e acatar a barbárie é sujar as mãos com suas consequências. Quando elas vierem - e as consequências sempre vêm -, não vai dar tempo de lavar as mãos.