Mercado ajusta foco ao cenário local
A ausência de pistas do Federal Reserve, ontem, em relação ao ritmo de aumentos nos juros dos Estados Unidos deixa a sensação de que, não apenas os mercados financeiros, mas também o Banco Central norte-americano estão receosos com Trump. Ao reiterar a intenção de alta gradual, em meio à melhora do mercado de trabalho e da confiança de empresários e consumidores, o Fed apenas elevou a expectativa pelos dados oficiais de emprego (payroll) no país, amanhã. Mas hoje, os negócios no Brasil têm uma agenda cheia.
A volta aos trabalhos no Legislativo e no Judiciário deve trazer maior volatilidade aos mercados domésticos, em meio às votações das reformas econômicas e das investigações da Lava Jato. Os destaques desta quinta-feira são a escolha para a relatoria da Operação no STF, cujo sorteio foi adiado para hoje, e a votação da presidente na Câmara.
A disputa na Casa chama mais atenção que a de ontem no Senado. Eunício Oliveira foi escolhido para substituir Renan Calheiros, com 61 votos. Trocou o nome (e o codinome na lista da Odebrecht), mas a Casa continua nas mãos do PMDB. O partido, aliás, pode ser o fiel da balança para definir a reeleição de Rodrigo Maia no cargo, autorizada pelo STF.
Maia disputa a presidência da Câmara com outros quatro deputados e pediu votos à bancada do PMDB. Em troca, prometeu tocar a pauta que interessa ao Palácio do Planalto, como as reformas da Previdência e trabalhista, além de mudanças no pacto federativo.
Com o Congresso devendo avançar na agenda do governo Temer, o receio fica com possíveis vazamentos seletivos de delações premiadas e suas consequências no cenário político. Ao mesmo tempo, cresce a pressão para que seja quebrado o sigilo colocado no material dos executivos da Odebrecht, para que a opinião pública siga acompanhando o caso.
Ontem, no discurso de despedida, Renan defendeu a quebra de sigilo. Sem citar expressamente as delações, ele disse que "quem já mudou o sistema investigatório precisa seguir esse caminho. É preciso abrir o sigilo das investigações, que se quebre, para que a população não seja manipulada".
A fala dele está em sintonia com a cúpula do PMDB e com o governo Temer, que passou a defender a quebra do sigilo das delações da Odebrecht. A esperança do partido é de que, com um escopo mais amplo, o foco do conteúdo não fique apenas no "núcleo duro" do governo, nem no próprio presidente Michel Temer, atingindo também outros alvos políticos.
Na agenda econômica, o calendário de indicadores está esvaziado hoje, lá fora e aqui. O destaque doméstico fica com o balanço do Bradesco no quarto trimestre do ano passado, que será conhecido antes da abertura do pregão local. O resultado no período deve ser afetado pela incorporação do HSBC, reduzindo o lucro líquido do banco para a faixa de R$ 4,5 bilhões em apenas três meses.
No exterior, saem apenas os pedidos semanais de auxílio-desemprego feitos nos EUA (11h30). Também merece atenção a decisão de política monetária do Banco Central da Inglaterra (BoE), às 10h.
Mas é a decisão de juros da véspera que agita os mercados internacionais hoje. O dólar continua sendo o grande perdedor entre os ativos globais e cai ante os rivais de países desenvolvidos e emergentes, em meio à determinação do governo Trump de punir a moeda norte-americana. Os riscos políticos e a disputa comercial estão por trás desse movimento.
Como resultado, cresce a busca por proteção em ativos seguros, como o ouro e o iene. A valorização da moeda japonesa penalizou a Bolsa de Tóquio, que caiu mais de 1%. O rendimento (yield) dos bônus de 10 anos do Japão (JGB) também subiu, pela primeira vez desde dezembro. Entre as commodities, o petróleo não tem forças para sustentar-se na faixa de US$ 53 o barril e o cobre recua.
O sinal negativo também prevalece nas bolsas do Ocidente. Os índices futuros de Nova York têm queda firme, o que contamina a abertura do pregão na Europa. Os investidores estão à espera dos números sobre a criação de postos de trabalho nos EUA em janeiro, bem como da taxa de desemprego no país, amanhã, a fim de definir se o novo aumento nos juros norte-americanos acontecerá já no mês que vem ou apenas em junho.
O fato é que o mercado segue cético, e ainda está longe de colocar na conta as três altas nos juros norte-americanos em 2017, como contempla o cenário base do Fed. Mas a economia norte-americana continua se aquecendo e está cada vez mais próxima do pleno emprego, o que tende a gerar pressão inflacionária à frente com o aumento da renda da população. E o duplo mandato do Fed monitora tanto o mercado de trabalho quanto a alta dos preços.
Esse ceticismo dos investidores em relação ao Fed leva em conta um início de ano favorável aos ativos de risco, com as bolsas acumulando valorização e as moedas emergentes ganhando força ante o dólar em janeiro. Fevereiro, porém, não promete ser tão tranquilo, impondo dificuldades para manter esse apetite.
A percepção de risco aumentou, principalmente diante da incerteza em relação ao governo Trump. Os investidores começam a desenvolver certo senso de realismo sobre qual pode ser o tipo de gestão a ser administrada pelo presidente Donald Trump. Para tanto, eles olham para as promessas de campanha do então candidato republicano, a fim de evitar maiores sustos.
Afinal, as medidas para reforçar o controle sobre as fronteiras dos EUA e reavaliar os acordos comerciais (Nafta e TPP) podem até não serem populares, mas ninguém pode dizer que não foi avisado. Trump é, em verdade, uma rara espécie de político que realmente faz o que ele diz que vai fazer – inclusive sem a necessidade de aval do Congresso.